Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 21 de novembro de 2017


                                 

          SOPEAM HOMENAGEADA


                                EM 


       CONGRESSO  INTERNACIONAL  



  O COLÓQUIO “MEDICINA NA ERA DA INFORMAÇÃO – MEDINFOR IV” decidiu homenagear este ano a Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos como “entidade de referência na relação especial que os Médicos mantêm há muito com a Literatura e a Arte em geral”.
O MEDINFOR é uma iniciativa conjunta das Universidades do Porto e Federal da Bahia, iniciada em 2009. Conta com a colaboração das Faculdades de Letras e de Medicina da Universidade do Porto e do Instituto de Ciências Biométricas Abel Salazar.
Coube-me representar a SOPEAM neste evento, realizado a 17 de novembro no Anfiteatro Nobre da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

sábado, 4 de novembro de 2017


EQUIPAMENTO 

DOS CIRURGIÕES MILITARES 

NO SÉCULO XVII

Joaquim Barradas publicou este ano o seu segundo livro, “Libelo da Rainha”. Trata-se de um estudo exaustivo sobre a crise da monarquia portuguesa nos anos que se seguiram à morte do rei D. João IV, restaurador da nacionalidade e fundador da dinastia de Bragança.
O autor ficciona a narrativa, mas cinge-se o mais que pode aos dados históricos conhecidos. Cirurgião que é, interessa-se pela medicina de combate. 


                              Roque Gameiro -Batalha de Montes Claros

Conta a história de Pedro Palmeiro e Eugénio Pão e Água, ambos cirurgiões, que embarcam numa falua para a margem sul do Tejo. Tinham sido mobilizados pelo conde de Castelo Melhor para compensar a falta de cirurgiões “para assistência e acompanhamento das tropas”. O texto que apresento reproduz o original, com os cortes que me pareceram necessários para abreviar o artigo sem desvirtuar a intenção do autor.

Pedro Palmeiro recosta-se na amurada depois de colocar a sua pequena bagagem debaixo da bancada. À sua frente, Eugénio Pão e Água apoia no ombro direito o comprido pau onde está amarrado o pano-cru que envolve o bornal e a sua exígua bagagem.



A falua entra na ribeira do vale do Zebro e detém-se, mais adiante, para desembarcar os passageiros junto à fábrica de biscoitos que abastece as naus da carreira da Índia.  Os cirurgiões sentam-se num banco enquanto aguardam a chegada de transporte. Pedro Palmeiro toma a iniciativa:
− Onde estão os teus ferros? – Pergunta, enquanto pega na sua estreita caixa de madeira e a põe sobre os joelhos.
− Estão no saco que trago aqui – diz Eugénio, apontando para a sua trouxa.
−Tens de arranjar uma caixa de amputação – diz o velho cirurgião, enquanto abre a mala e mostra os instrumentos contidos em cada um dos pequenos compartimentos lavrados na madeira: um grande serrote, tesoura, duas pinças, uma sonda-cânula e duas lancetas. A um canto, uma longa fita de pano enrolado para servir de garrote. Noutro espaço mais pequeno, as agulhas e fios de sutura.
Eugénio nada diz e é o velho cirurgião que retoma a conversa:
− Quando fazes exame para mestre?
− Não há mestres no meu ofício.
− Como não há mestres?
− Sou cirurgião oculista e catarateiro.
− E já fizeste alguma operação?
− Não, não fiz.
− Sabes tratar a feridas e fazer sangrias?
− Sim, sei.



− Isso é que é preciso. Na guerra é isso que vale. Aqui não precisamos de médicos nem há vagar para tomar o pulso e dar aquelas mezinhas que eles dão. É uma fartura de ossos partidos e de feridas a sangrar. O que é preciso é cortar, e seguir adiante. É tanta a gente ferida e são tantos os que ficam para trás que não há tempo para nada.  


Fonte: Joaquim Barradas. Libelo da Rainha. By the Book, Lisboa, 2017.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017


EUTANÁSIA EM CAMPOS DE COMBATE



Em “A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros”, Joaquim Barradas abordou a sangria a combatentes no campo de batalha, com a intenção de minorar o sofrimento dos feridos incuráveis. Seria, em geral, uma forma de Eutanásia. Ouçamos o autor:

Ainda no século passado eram feitas sangrias no campo de batalha aos feridos em combate, muitos deles já debilitados pela hemorragia.
No fim da batalha, muitas vezes ficavam milhares de feridos no terreno, que chegavam a passar uma noite inteira ao relento, sem assistência, tendo por companhia milhares de mortos e os lamentos dos companheiros igualmente feridos. Houve um tempo em que a primeira preocupação era minorar o sofrimento, ainda que em detrimento da evolução da doença.
A sangria feita no campo de batalha embotava a perceção da dor e provocava alguma obnubilação que transportava os soldados para um nível de consciência que, de alguma forma, os afastava do sofrimento, do incómodo e de outras provações.

Em “O Libelo da Rainha”, publicado este ano, Barradas retoma o tema da Eutanásia nos campos de batalha, desta vez executada de forma bem mais ativa.
A 17 de junho de 1665, o exército português, comandado por D. António Luís de Meneses, conde de Cantanhede e marquês de Marialva, alcançou uma vitória significativa sobre as tropas espanholas do marquês de Caracena, que ocupara Borba e sitiava Vila Viçosa. O combate travou-se em Montes Claros, local que dominava a estrada estratégica que ligava Estremoz a Vila Viçosa. Os invasores tinham a intenção de ocupar Lisboa e de pôr fim à tentativa de restauração da nacionalidade portuguesa. A batalha teve custos elevados para ambos os lados.


Passo a citar Joaquim Barradas:

Há quatro mil e setecentos mortos pelo terreno. Uns montes deles estão empilhados aqui e acolá, mas a maioria está disseminada pela campina, tal como os feridos e estropiados. Alguns estão agonizantes e lutam para sobreviver; outros já se entregaram, prostrados no chão. Entre os oito mil feridos e os milhares de soldados mortos jazem também os cadáveres de quinhentos cavalos.
− Água. Dêem-me água, pedem alguns dos feridos.
Muitos não podem andar e alguns queixam-se de dores enquanto aguardam a sua sorte entre vasculhos de ramo amarelo caído e a secura de espinhos carapetos. Os feridos que sabem a vida a prazo e suspeitam do tormento que aí vem, apelam a quem passa:
− Matem-me. Por serviço de Deus, matem-me.
Os degoladores iniciam o seu trabalho misericordioso, e logo satisfazem os pedidos dos mais maltratados da batalha. Aproximam-se, fazem um movimento de pinça do braço com o antebraço, fixam a cabeça e expõem o pescoço para passarem rapidamente o punhal. A atmosfera é serena e o azul profundo do céu assenta num horizonte circular que envolve numa generosa campânula os corpos estendidos na planície. Pelo ar, anda um cheiro adocicado.


Encontram-se referências aos degoladores, que desempenhariam funções específicas em alguns exércitos (nem sempre com intenções piedosas) nos comentários às guerras que afligiram a América do Sul no final do século XIX e no começo do século XX. Pouco sei deles na história dos conflitos europeus. Tenciono voltar a abordar o tema dentro de algum tempo. 

Fontes:  Joaquim Barradas, Libelo da Rainha, By the Book, Lisboa, 2017.

            Joaquim Barradas, A Arte de Sangrar de Cirurgiões e Barbeiros, Livros Horizonte, 
            Lisboa, 1999.