Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 30 de junho de 2017


VIDA SALVA POR LIVROS


Há quatro décadas e meia eu era médico no Gil Eannes. Em julho, a frota dividiu-se e eu fui colocado no Neptuno, um navio de pesca à linha que integrou o grupo das embarcações que resolveram tentar a sorte na Gronelândia. O navio hospital voltou para sul, em direção aos bancos da Terra Nova.


O terceiro máquinista do Neptuno era um jovem folgazão, de pele rosada e rosto redondo Lembro que fazia lembrar um personagem alegre da série televisiva “Bonanza”, em voga na época. Via-se que iria ser gordo na meia-idade. Parecia uma pessoa normal, mas aconteciam-lhe coisas pouco comuns, que dificilmente encontram justificação nas estatísticas. Adotaria comportamentos de risco, capazes de atraírem o azar. Uma vez, rebentou a máquina de fazer óleo de fígado de bacalhau, que ele estava a reparar. A explosão deu-se para trás e ele não sofreu nada. Noutra ocasião, um pacote pesado despendeu-se do pau de carga e caiu-lhe mesmo aos pés. Se tivesse avançado um passo, morreria ali. 
Calhou-me estar por perto quando a morte o desafiou pela terceira vez.
Naquela época, a temperatura da água do mar rondava os 2 graus centígrados e os icebergs derretiam devagar. Corriam histórias de pescadores que caíam à água e eram imediatamente recolhidos. Não tinham tido tempo para se afogarem, mas já estavam mortos ao serem resgatados. Era o choque térmico. O coração recusava continuar a bater ao ser confrontado bruscamente com o frio extremo.
Ali, no verão, era sempre dia. Ganhei o hábito de, por volta das 22.30, correr a cortina da vigia e acender a luz do camarote, para fingir que era noite.
Um dia, já me me tinha sentado para jantar e acabava de ser servida a sopa. Um marinheiro entrou a correr na pequena sala de refeições dos oficiais. Gritou:
− O terceiro de máquinas caiu ao mar. Já foi recolhido.
Levantei-me e corri, com um aperto no coração. Receava confrontar-me com o cadáver dum jovem.
− Para onde é que o levaram?
─ Para o camarote dos maquinistas.
A distância era curta e, menos de um minuto depois, estava ao pé dele. Encontrava-se no chuveiro, a cantarolar, como se nada lhe tivesse acontecido.
Tinha ido substituir a luz do mastro da popa do navio. Levava na mão uma chave de fendas e um alicate e voltou com eles para bordo.
Não se entende como alguém se pode deixa cair, com bom tempo, de um mastro à água. Se o mar estiver mau, a tarefa adia-se. Qualquer pessoa normal se agarraria com mãos e pernas.


Por sorte, ou milagre, encontrava-se um dóri mesmo ao lado. Era de outro navio. O pescador apanhou-o antes dele se afogar. 
Há meia dúzia de meses fui ao museu Marítimo de Ílhavo fazer uma conferência sobre a minha experiência como médico do Gil Eannes. Tive a oportunidade de conhecer um jovem que se apresentou como neto do pescador que tinha salvo a vida do maquinista. O avô embarcara num navio cujo nome não fixei. Gostava de ler e trocava livros com um amigo que tinha no Neptuno. Como as embarcações andavam perto, aproveitara a oportunidade para entregar volumes lidos e recolher outros novos. O jovem folgazão sobrevivera porque, naqueles mares gelados, havia quem gostasse de ler.

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