Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016


CAMILO CASTELO BRANCO


ESTUDANTE DE MEDICINA
 


Anos atrás, escrevi duas biografias na primeira pessoa: “O Diário de Salazar” e “Eu, Camilo”. Em ambas, coloquei ao lado dos textos produzidos pelos personagens biografados os redigidos por mim. Se foi relativamente fácil imitar a escrita de Salazar, seguir o mesmo processo com Camilo representou algum descaramento e um esforço considerável de mimetismo.


É difícil falar em beleza na nossa literatura em prosa sem evocar Camilo Castelo Branco. Percebo que os escritores são todos datados, uns mais do que outros. Os problemas que afligem uma geração poderão parecer distantes e artificiais um século mais tarde. No entanto, há na escrita de Camilo um vigor, uma excelência no domínio da construção das frases que, até hoje e a meu ver, não foi ultrapassada na língua portuguesa.
    Camilo fez brilhar o romantismo em Portugal quando ele começava a envelhecer no centro da Europa. Os escritores românticos apreciavam os sentimentos fortes e carregados. O ciúme, a vingança e o desespero exigiam um estilo declamatório e frenético. Camilo emprestou-lhe o seu timbre pessoal. Os discursos dos seus personagens são elaborados e muitas vezes espetaculares. Camilo Castelo Branco chegou a ser considerado o maior romancista da Península Ibérica.
A vida do escritor começou mal e acabou pior. Filho ilegítimo de um nobre e de uma criada, nasceu em Lisboa. Órfão aos 10 anos, foi recebido em Vila Real de Trás-os-Montes por uma tia que se aproveitou da sua mocidade para lhe roubar o património.
Após as primeiras letras, apenas o padre António, cunhado de sua irmã Carolina, lhe ensinou rudimentos de francês e de cantochão. Os primeiros livros que leu pertenciam ao padre, cuja biblioteca era reduzida.
Camilo passou a adolescência em aldeias do Norte de Portugal. Aos 16 anos, já o tinham casado. O futuro escritor abandonou a mulher e a filha pequena. Ambas morreram cedo.
     O jovem Camilo resolveu fazer-se médico, como o cunhado Francisco José de Azevedo, irmão do padre António. Informou-se sobre as condições para a admissão na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Era necessária a aprovação em Gramática e Língua Francesa e, segundo se infere do "Dicionário" de Alexandre Cabral, em Filosofia Racional e Moral.

  Corpo sul do Hospital de Santo António, onde esteve instalada a Escola Médico-Cirúrgica

Camilo preparou-se, ninguém sabe bem como, dada a sua pouca escolaridade anterior. Prestou provas em outubro de 1843, no Liceu Nacional do Porto e foi aprovado. Três dias depois, matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica. O primeiro ano constava das cadeiras de Anatomia e Química. Como a Química podia ser frequentada noutro sítio, inscreveu-se na Academia Politécnica.

            Desenho da Academia Politécnica do Porto, no séc. XIX

Eu morava na Rua Escura, um beco fétido de coirama surrada, em uma esquina que olha para a viela de Pelames. Éramos dois os estudantes que ocupávamos o terceiro andar, com uma retorcida varanda de pau debruçada em ameaças sobre os transeuntes…

      No verão de 1844, concluiu o primeiro ano. Foi aprovado em Química e Anatomia. A 15 de outubro, matriculou-se no segundo ano da Escola Médica e na cadeira de Botânica da Academia Politécnica.

Fotografia do livro de exames da Escola Médico-Cirúrgica do Porto

Camilo entendeu cedo que não tinha vocação para médico. Perdeu o ano por faltas.

O certo é que eu, em 1845, há quase vinte anos, bem que nem sequer entressonhasse o céu e o inferno de escritor, já me empenhava de tecer enredos de romances, enquanto os meus lentes de química e botânica se desvelavam em me fazer crer que há ácidos e óxidos, e que há vegetais monocotiledóneos e vegetais andróginos: coisas de que eu sinceramente não duvido nem sei nada. (Em A filha do Doutor Negro).

     Mudou-se para Coimbra, com a intenção de estudar Direito. Em 1846, as aulas encerraram, devido à revolução que ficou conotada com o nome de Maria da Fonte. Camilo voltou a Vila Real.
     Em 1848, com 23 anos, foi para o Porto e começou a sua carreira de jornalista. Abandonou em Vila Real a namorada grávida.
     No Porto, levou uma vida atribulada. Após uma ligação sentimental com uma freira, chegou-lhe a vocação religiosa e inscreveu-se no Seminário do Porto. 
     O seminarista assistiu a poucas aulas. Graças à qualidade dos artigos que ia publicando nos jornais católicos, acabou por receber ordens menores. Passava muitas horas na Biblioteca de S. Lázaro. Estudou os clássicos portugueses antes de se virar para os autores europeus contemporâneos.
   Camilo Castelo Branco foi a primeira pessoa em Portugal a viver exclusivamente da escrita.


Bibliografia
Cabral, Alexandre. Dicionário de Camilo Castelo Branco. Editorial Caminho, Lisboa, 1988.
Viale Moutinho, José. Camilo Castelo Branco. Memórias fotobiográficas. Editorial Caminho, Lisboa, 2009.
    

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