Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016



A ESPINHELA CAÍDA




Encontrei em saldo, numa livraria prestes a encerrar, um livro precioso de um historiador de Coimbra que aborda as crenças mágicas prevalecentes na região na segunda metade do século XVII e na primeira do século XVIII. 
José Pedro Paiva esmiuçou os registos das visitas pastorais da diocese de Coimbra ao longo de 90 anos, procurando relatos referentes às acusações de prática de magia recolhidas pelos religiosos visitadores. Sistematizou-os e produziu uma obra cheia de interesse que abre uma janela sobre uma realidade social paralela à nossa e muito próxima dela.
No começo, a Medicina e a Magia andaram de mãos dadas. Segundo a limitada informação disponível, os “curadores”, “benzedores”, “mezinheiros” e “bruxos” continuam em plena atividade, escondendo as suas práticas dos olhares profanos. Pouco terá mudado nas crenças populares. Lembro-me de um “bruxo” de Almada que me enviava ocasionalmente doentes que não sabia tratar. Nunca falei com ele (que eu saiba) mas tratava-se seguramente dum homem sensato. A triagem a que procedia não era pior que a praticada pela maior parte dos meus colegas de profissão.
Irei publicar neste blogue alguns pequenos artigos sobre as entidades clínicas mais ou menos definidas diagnosticadas e tratadas pelos curandeiros. Parti das informações contidas neste livro e fui-as completando com achegas provenientes de outras fontes, contando-se entre elas artigos publicados na Internet.
Neste pequena “nosologia” começarei por descrever a abordagem da “espinhela caída”, uma doença frequente. É, pelo menos, um dos males mais vezes referidos no livro de José Paiva. Houve quem lhe chamasse “mal do estômago” e a caracterizasse essencialmente pelos sintomas de dor e sensação de opressão no epigástrio.
A “espinhela” é o apêndice xifoide. Ficará “caída” se torcer ou dobrar. As etiologias propostas para a modificação anatómica são muito variadas. Do dicionário mais ou menos enciclopédico do padre francês Raphael Bluteau, começado a publicar em Coimbra em 1712, os mecanismos possíveis para fazer cair a espinhela vão de esforços e traumatismos à tosse e a distúrbios alimentares.
As entidades nosológicas da Medicina Mágica têm contornos mais esbatidos que as da nossa. Existindo poucas vezes em forma escrita, são transmitidas de geração em geração e o significado das palavras varia com o tempo e com a geografia. Enquanto nos registos feitos em português, “espinhela caída” designa geralmente formas diversas de padecimento gástrico, nas publicações de origem brasileira, fáceis de encontrar na Internet, o termo traduz-se mais ou menos por lombalgia de esforço. É apontado para o mal um critério objetivo de diagnóstico. Mede-se, com uma linha, a distância que vai da ponta do dedo anular até ao cotovelo e aplica-se o dobro dessa medida à cintura do doente. Se faltar, ou exceder um palmo, a espinhela está caída.
As terapêuticas são também variadas. Associam, de modo geral, rezas ou formulações mágicas orais à aplicação de substâncias pretensamente curativas.
Deixando de lado as variadas propostas brasileiras de tratamento, passo a citar José Pedro Paiva:
Maria Antónia, de Trouxemil, curava este mal aplicando na região das queixas um emplastro feito de mel misturado com incenso e mandando rezar nove credos em louvor da Paixão de Cristo, nove Avé Marias em honra do parto da Virgem e um Padre Nosso e uma Avé Maria pelas almas do Purgatório.  
Maria Rodrigues, de Albergaria-a-Velha mandava aquecer um pouco de vinho, mergulhava nele um raminho de alecrim e esfregava com ele a testa e a “boca do estômago” do doente, mandando-lhe rezar nove salve rainhas e cinco credos, enquanto repetia as seguintes palavras: se tu tens a espinhela caída, eu ta levanto em louvor da Virgem Nossa Senhora.
Isabel Luís, da Celavisa, dispensava o uso de medicamentos. Ajoelhava-se, benzia-se e rezava: tens a espinhela caída, a Virgem Nossa Senhora ta concerte e ta torne a seu lugar; espinhela têm-te em ti assim como Nosso Senhor se teve em si, espinhela ergue-te no corpo assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve no horto, espinhela ergue-te na veia assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve na ceia, espinhela ergue-te forte, assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve na morte; assim como vosso corpo meu Senhor Jesus Cristo foi rendido, sentido, desconjuntado na cruz e crucificado, vós meu Senhor para remir e salvar pecadores fostes servido de os visitar em Val de Manos, assim vós, Senhor, remediai esta necessidade.  


Fontes:
José Pedro Paiva. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na Diocese de Coimbra (1650 – 1740). Minerva Histórica, Coimbra, 1992.
Bluteau, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. Colégio das Artes da Companhia de Jesus, Coimbra, 1712-1728.

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