Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 24 de junho de 2015


      MEDICINA CHINESA TRADICIONAL

    A OBSERVAÇÃO DO DOENTE


   À primeira vista, parece existir, da parte dos clínicos chineses, uma preocupação de objectividade que faz lembrar os ensinamentos de Hipócrates. Recorde-se que o médico grego foi contemporâneo de Confúcio.  O velho texto Shi Ji, compilado no século V a.C., refere a necessidade de observar cuidadosamente o enfermo: olhar, ouvir, cheirar, perguntar e tocar. No entanto, a semiologia chinesa perde-se em pormenores intrincados e fantasiosos.
A observação do doente começa por um olhar de relance sobre o seu tipo físico, personalidade e estado de espírito. 
   A obesidade denuncia a deficiência do Qi, enquanto a magreza excessiva aponta para a fraqueza do sangue e do Yin. Se o doente fala em demasia, sofre provavelmente do coração. Se grita com facilidade, estarão em causa o fígado ou a vesícula. Se chora ou suspira, o mal está nos pulmões. Os gemidos, os bocejos e o ressonar indiciam o mau funcionamento dos rins. O brilho do olhar permite avaliar o estado de espírito (Shen).
Pergunta-se pela profissão exercida. Para além de se informar sobre os hábitos e as preferências alimentares do doente, o médico quer saber das suas mágoas e preocupações pessoais e interroga-o sobre o sono. A sonolência excessiva indica deficiência do Qi e do Yang, enquanto as insónias traduzem uma atividade excessiva do Yang. 
    As características da dor são esmiuçadas. Interessa o tipo da dor, a sua localização e as circunstâncias em que surge. As dores resultantes da deficiência de Qi ou de sangue melhoram com a ingestão de alimentos ou com a pressão no ponto doloroso. Naturalmente, as dores que melhoram pelo aquecimento são originadas pelo estado de frio e as que aliviam com o arrefecimento pelo estado de calor. Existem também as dores desencadeadas pelo estado de humidade e as móveis, provocadas pelo estado vento. As dores fixas podem ser causadas pela má circulação (ou «congelamento») do sangue.  
   A seguir, palpam-se atentamente os pulsos e observa-se a língua, os olhos e o hálito.


A palpação do pulso reveste-se de uma complexidade extraordinária. Foram escritas centenas de livros sobre esta matéria. Dizem alguns que existem onze pontos para apreciar as suas setenta e quatro variedades. No entanto, é geralmente escolhido o pulso radial, dos dois lados, palpado com os dedos indicador, médio e anelar. Nos homens, é mais importante o exame da mão esquerda e, nas mulheres, o da direita.
Cada dedo distingue as indicações obtidas pelos bordos interno e externo. A pressão exercida é diferenciada e são tidas em consideração as pulsações superficiais, intermédias e profundas. Há sete variedades de pulso superficial. Contam-se entre elas o pulso flutuante, que «desliza como um peixe na água ou um pedaço de madeira a boiar», o escorregadio «como um colar de pérolas a escorregar por entre os dedos» e o apertado e comprimido, «como uma corda a ser torcida». As variantes do pulso profundo são oito. Pode ser disperso e lento, «como o chorão soprado pela brisa primaveril», ou irrequieto e a mover-se «como um coxo, como a faca que apara a haste de bambu, ou como gotas de chuva a caírem no solo arenoso». Para valorizar os dados recolhidos, são tidos em consideração a idade, o sexo, o estado de alma, a hora do dia, a estação do ano e as influências astrais.

Representação gráfica das pulsações dos pontos superficiais e profundos

A cada víscera corresponde um pulso privativo que denuncia as alterações do seu funcionamento. Existem padrões referenciais para os pulsos superficial e profundo de cada órgão:
O pulso do coração deve ser como o movimento de uma foice, vibrante no início e subtil em seguida;
O dos pulmões deve fluir sempre igual e muito suavemente, como o cabelo ou as penas sopradas pela brisa;
    O pulso do fígado vibrará como a corda dum instrumento musical.  

A interpretação da variação das cores do rosto é difícil, estando apenas ao alcance dos verdadeiros mestres. Eles conseguem, mediante esta observação, aceder a verdades autênticas, pois «na face transparece todo o Qi e todo o sangue dos meridianos». Os livros que abordam o assunto não são claros para todos. As cores «vão do branco ao negro, passando pelo vermelho, o amarelo pálido ou escuro, o laranja e o chêng (cor indefinida que oscila entre vários tons de verde e azul). O escurecimento do rosto indica uma desarmonia extrema, sendo o mal difícil de curar.
Na língua, observam-se a cor e a textura e procuram-se secreções ou mucosidades. Cada zona da língua espelha o funcionamento dum órgão. A ponta é controlada pelo coração e a região contígua está relacionada com os pulmões. O centro tem a ver com o baço e o estômago. Em ambos os lados, o domínio pertence ao fígado e à vesícula biliar.
O médico chinês atenta ainda nas secreções e excreções (relatadas ou observadas), no tom da voz, na tosse, no ritmo da respiração, no odor corporal e no hálito.
O hálito «podre» localiza o mal nos pulmões ou no cólon. O «pestilento» aponta para doença do rim ou da bexiga. O «rançoso» indica o fígado ou a vesícula biliar. O «ardente» traduz o mau funcionamento do coração ou do intestino delgado.
Na medicina tradicional chinesa, a observação do doente é um processo demorado. Deve ressaltar-se a importância dada à semiologia do pulso. Quando um chinês de Macau ia ao médico, utilizava a expressão tai-mak, que significa «ver o pulso».

Bibliografia:
Na preparação deste artigo e dos precedentes, recorreu-se a:
Medicina Chinesa – em busca do equilíbrio perdido, de Cecília Jorge e Beltrão Coelho.
Alguns aspetos da medicina tradicional chinesa – artigo de Ana Maria Amaro, transcrito pelo padre Manuel Teixeira no seu livro Medicina em Macau.
Notas sobre a Medicina chinesa, de José Caetano Soares, também transcrito pelo padre Manuel Teixeira no seu livro Medicina em Macau.




Sem comentários:

Enviar um comentário