Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

  

   MORTE DE UM NEUROCIRURGIÃO 

                EM CATIVEIRO



Ninguém sabe que porção de realidade se esconde atrás das lendas. O escritor chinês Luo Ghuanzhong escreveu, no século XIV, «O romance dos três reinos» que glorifica a figura do médico e cirurgião Hua Tuo, encarcerado até à morte por ordem do general Cao Cao. Cao sentou-se num dos três tronos que resultaram do desmembramento do império Han.

                  Representação de Cao Cao

Hua Tuo tem, para os chineses, um prestígio incomparável. É o patrono da cirurgia. Foi deificado e as suas imagens são veneradas em muitos tempos taoistas, inclusive em Macau. 

                     Estatueta de Hua Tuo

«Hua Tuo reincarnado» é uma expressão usada na China para elogiar um médico de reputação extraordinária.
Hua é o nome de família e Tuo o próprio. Terá vivido entre os anos 140 e 208 d.C., testemunhando a passagem da dinastia Han à era dos Três Reinos. É considerado pioneiro na cirurgia abdominal. Julga-se que foi o primeiro cirurgião do mundo a operar com anestesia geral. 


Terá executado também trepanações.
A sua formulação anestésica não foi transmitida à posteridade. Pensa-se que usou, dissolvido em aguardente de arroz, um preparado de ervas chamado «mafeisan». A tradução literal de «mafeisan» é «pó de cannabis cozido».
A tradição adicionou à sua obra uma série de pontos novos para acupuntura e a invenção de suturas, de unguentos anti-inflamatórios e de remédios para a ascaridíase.   
A trepanação foi aprovada por Hipócrates para o tratamento de feridas cranianas. Não há indícios de que o médico de Cós a tenha praticado pessoalmente.
Cao Cao sofria de dores de cabeça recorrentes e mandou chamar Hua Tuo para o tratar. O médico utilizou técnicas de acupuntura e obteve resultados apreciáveis. Preveniu o poderoso doente de que seriam necessários novos tratamentos.
Passado algum tempo, Hua Tuo voltou a ser chamado. O general Cao estava pior.
Neste ponto da narrativa, as transcrições diferem. Segundo uma delas, Hua Tuo demorou-se, alegando que sua esposa estava doente. Terá sido levado à força pelos soldados de Cao.
É a outra versão que nos agrada tomar por real. Face à persistência das queixas do senhor da guerra, o grande médico propôs-se trepaná-lo. Não é de crer que se dispusesse a uma intervenção cirúrgica de risco certo e resultado duvidoso sem dispor de grande experiência na sua execução. Desse modo, será a primeira vez na História da Medicina que a trepanação aparece associada ao nome do cirurgião que a praticou.
Cao Cao era homem desconfiado. Achou que o médico planeava assassiná-lo e atirou-o para as masmorras, onde acabou por morrer. Terá sido executado.
O Romance não indica a data certa da morte de Hua Tuo, mas terá sido em 208 ou antes.
Os seus conhecimentos perderam-se. A anestesia demoraria muitos séculos a ser reinventada e a cirurgia chinesa regrediu consideravelmente. 
     O «Romance dos Três Reinos» conta que, antes de morrer, Hua Tuo confiou a um carcereiro o livro em que registara o seu saber. Cheia de medo, a mulher do carcereiro pôs fogo ao livro. O marido foi apenas capaz de recuperar as folhas que descreviam o método de castração de patos e galos. Esse e os pontos novos de acupuntura são os ensinamentos de Hua Tuo que persistem hoje.




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