Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 28 de junho de 2015

          

    BREVE HISTÓRIA DO HOSPITAL KENG-WU

Comecemos pelo nome. Keng-Wu significa «lago do espelho», uma das 11 designações poéticas da cidade de Macau. Assim «Hospital Keng-Wu» quer dizer apenas «Hospital de Macau». O seu patrono é o lendário cirurgião chinês Hua Tuo, também chamado Hua-Tó e Vá Tó. Hua Tuo foi deificado após a morte e é adorado em vários altares de Macau.
                         Primeiro hospital Keng Wu
     Nas últimas décadas do século XIX desencadeou-se, entre os chineses ricos, um movimento de solidariedade para com os desvalidos. Culminou na fundação de hospitais e de outras instituições caritativas em diversas cidades chinesas. Em Cantão, Macau e Hong Kong foram também criados hospitais para os pobres.
O Hospital Keng Wu foi fundado por elementos proeminentes da comunidade chinesa de Macau por volta de 1870. Tinha por finalidade proporcionar consultas médicas, fornecer medicamentos, recolher cadáveres e dar-lhes sepulturas gratuitas. A benemérita instituição ultrapassava em muito as funções de um hospital: ajudava a reparar as ruas da cidade, socorria os sinistrados por ocasião de calamidades, fundava escolas, arbitrava querelas, oferecia chás e vendia produtos essenciais a preços inferiores ao do mercado.
                       Sun Yat Sen no Hospital Keng Wu
     Durante os primeiros dez anos de existência, apenas foi ali praticada a medicina tradicional chinesa. Em 1892 deu-se o acontecimento mais relevante da sua história: o Dr. Sun Yat Sen, futuro «pai da China moderna» iniciou a prática da medicina e cirurgia europeia naquela instituição. Durante meio século, trabalharam, lado a lado, no Hospital Keng Wu mestres chinas e médicos formados em universidades de saber ocidental.
Em 1917 procedeu-se a uma coleta para a construção dum novo edifício com maternidade. O projeto recebeu uma ajuda importante de José Carlos da Maia, oficial da Marinha Portuguesa e herói da Revolução Republicana de 1911, que governou Macau entre 1914 e 1916 e exerceu, durante alguns meses do ano de 1918, o cargo de ministro da Marinha. Este amigo de Macau levou o governo português a conceder um subsídio importante, ainda que minoritário, para a edificação do novo hospital. José Carlos da Maia viria a ser barbaramente assassinado na Noite Sangrenta de 19 de outubro de 1921.
Em 1923, foi criada uma Escola de Enfermagem no hospital Keng Wu. Em 1930, foi determinado que os «médicos de dia» permanecessem no hospital o dia inteiro. Em 1936 foram publicados anúncios nos jornais, pedindo médicos europeus. Em 1941 já existia um Regulamento para os médicos europeus do hospital.   
Em 1943, deu-se uma reviravolta na orgânica da instituição. Acabou o exercício da medicina tradicional chinesa, restando apenas a europeia. No mesmo ano foi fundado um asilo para crianças. Receberia cem rapazes abandonados, ainda nesse ano, e mais trezentos no ano seguinte. Seria extinto após o final da II Grande Guerra.
Entre 1941 e 46, a entrada massiva de refugiados de guerra em Macau sobrecarregou o hospital.
Os arquivos recolhidos pelo padre Manuel Teixeira referem repetidamente os contributos do hospital para a fundação e reparação de cemitérios.
Curiosamente, essa preocupação poderá estar relacionada com a elevada mortalidade ocorrida nos doentes internados durante os primeiros anos de existência do hospital. Escreveu o Dr. Lúcio da Silva, no seu relatório de 1883: «… sendo portanto a mortalidade maior que aquela que houve no nosso hospital de S. Rafael, o que não admira, atendendo às péssimas condições dos doentes que são conduzidos ao hospital chinês». O Dr. Tovar de Lemos descreveu-o assim, em 1886: «O hospital china, situado fora da cidade, está entre o bairro china em que estão os tins-tins e o cemitério. (Tins-tins eram os vendedores ambulantes que golpeavam uma chapa com um martelo para chamar a atenção dos fregueses). É um vasto edifício, com extensíssimas enfermarias, estando porém os doentes, dois a dois, isolados por delgadas paredes; os quartos têm duas tarimbas de suja madeira, uma pequena almofada de loiça ou madeira que serve de travesseiro. Os chinas estão vestidos e não usam cobertores nem lençóis. Nada mais há nos quartos. A alimentação é fraquíssima; consta principalmente de arroz.»
                             Hospital Keng Wu nos dias de hoje
A modernização do Keng Wu desenrolou-se progressivamente. Em 1944 fez-se a sala de operações, que começaria a funcionar no ano seguinte. Em 1948, foi adquirido equipamento de Raios X e ultra-violetas. Em 1950, organizou-se a secção de ginecologia. Em 1952, fundou-se um consultório de dentista. Em 1956, inaugurou-se a casa «Ho Cheng Kai», para residência de enfermeiros. Em 1961, foi criado um pavilhão de isolamento para portadores de doenças contagiosas.
Os resultados da evolução registada foram reconhecidos por todos. O padre Manuel Teixeira escreveu, em 1998:
Outrora, os chineses, crendo-se superiores pela sua experiência milenária, recusavam a nossa medicina, consultando os seus herbanários e mestres chinas. Hoje, eles próprios estudam a medicina europeia e têm médicos muito competentes. Só no Keng Wu há nada menos de 35 médicos, com bons especialistas, que não são nada inferiores aos nossos.
A época dos «mestres chinas» ou curandeiros já passou. Ainda se veem nalgumas casas tabuletas com esses nomes, mas já perderam a sua influência e clientela.



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