Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 28 de março de 2015


HISTÓRIA DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA

V

WILLIAM HARVEY  E A GRANDE CIRCULAÇÃO



William Harvey nasceu em 1578 e faleceu em 1657. Fez os primeiros estudos em Folkstone, a sua terra natal, e mudou-se depois para Cantuária, onde frequentou a escola real. Aos quinze anos, transferiu-se para Cambridge, onde estudou durante meia década. A seguir, viajou pela Europa. A partir de 1599, frequentou a Universidade de Pádua, sob a orientação de Fabrício de Acquapendente e formou-se em Medicina aos 24 anos. Note-se que a Universidade de Pádua, a mais prestigiada Escola Médica da altura, está presente em todos os artigos desta pequena série. O nome de Fabrício ficou associado à descoberta das válvulas venosas cuja existência fora descrita pelo nosso Amato Lusitano 24 anos mais cedo.
Feito médico, Harvey regressou a Cambridge onde obteve o doutoramento. Estabeleceu-se a seguir em Londres e entrou para o Colégio dos Médicos. Iria trabalhar no Hospital de S. Bartolomeu durante quase toda a vida. O seu prestígio e o casamento com a filha do doutor Lancelot Brown, médico da rainha Isabel e de James I valeram-lhe a nomeação como médico do rei James I. Morto este, passou a tratar o novo rei Carlos I.
A reflexão sobre os conhecimentos anatómicos reunidos ao longo dos dois séculos anteriores e a o começo do entendimento de alguns mecanismos fisiológicos do corpo humano permitiram a William Harvey dar início às investigações que culminaram, em 1628, com a descrição da grande circulação sanguínea.
Andrea Cesalpino já se tinha apercebido de que o movimento do sangue nas veias se fazia sempre da periferia para o coração, enquanto o circuito essencial da pequena circulação fora desvendado pelos trabalhos de Ibn al-Nafis e publicitado por Miguel Servet e Realdo Colombo.
William Harvey fez muitas autópsias humanas e animais, mas compreendeu cedo que havia pouco a aprender no estudo de cadáveres, uma vez que o sangue se movimentava apenas em organismos vivos. Observou sistematicamente, à lupa, os batimentos cardíacos de uma série de pequenos animais, entre os quais se incluíam caracóis, moscas e camarões. Escreveu: «se os anatomistas fossem tão versados na dissecção de animais inferiores como o são no corpo humano, muitas coisas que até hoje os deixam perplexos seriam compreendidas sem dificuldades».
Julgou-se, durante séculos a fio, que o sangue tinha uma existência muito curta, formando-se no fígado para se extinguir rapidamente nos órgãos periféricos. Foi Harvey quem postulou que a sua existência era, afinal, relativamente prolongada. O médico inglês calculou a quantidade de sangue expelido diariamente pelo ventrículo esquerdo. Mesmo fazendo as contas muito por baixo, chegou às centenas de litros. Nunca o fígado seria capaz de produzir tamanha quantidade de sangue. O sangue contido nas artérias e veias tinha a mesma origem, não sendo produzido em partes diferentes do corpo humano. O sangue arterial não era consumido na periferia, mas regressava pelas veias ao coração para voltar a circular por todo o organismo. Os ventrículos contraíam-se quase ao mesmo tempo, expelindo o sangue para a aorta e para a artéria pulmonar. Todo o sangue do ventrículo direito seguia para os pulmões, regressando, pelas veias pulmonares, ao ventrículo esquerdo.


Em 1628, Harvey publicou a monografia Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus que ficou conhecida pela abreviatura «De motu cordis» e revolucionou as bases em que a Medicina assentara durante mais de um milénio. O investigador escolheu a Feira do Livro de Frankfurt, para lançar a sua obra. O seu reconhecimento foi imediato, assim como o escândalo que despertou. Um grande número de médicos conhecidos apressou-se a expressar o desagrado pela nova teoria e houve quem o chamasse charlatão. A sua reputação profissional foi afetada negativamente e um número apreciável dos seus doentes abandonou-o.
No entanto, Harvey utilizara o método experimental, que se havia de impor mais tarde na investigação científica. Qualquer ideia nova deveria mostrar a sua validade sujeitando-se à experimentação. As suas experiências foram repetidas por terceiros e a verdade veio ao de cima. Diz Namora que «William Harvey foi dos raros génios da Medicina que assistiram á consagração da sua obra».
Harvey foi contemporâneo de Shakespeare e de Descartes. Shakespeare escreveu o Hamlet enquanto Harvey estudava em Pádua.


     René Descartes entusiasmou-se com a descoberta da circulação do sangue e publicitou-a nos seus livros As Paixões da Alma e o Discurso do Método. A noção de «espírito», tão cara aos antigos, foi reformulada por Descartes: «porque o que eu chamo espíritos não é mais do que matéria, com a particularidade única de ser constituído por corpos muito pequenos que se movem muito depressa.»

Fontes:

Barradas, Joaquim. A arte de Sangrar de cirurgiões e barbeiros. Livros Horizonte, Lisboa, 1999.
Gutiérrez, F. A dissecção no Islão e no ocidente cristão na Idade Média. 22/agosto/2010, Terceira cultura (Internet).
Namora, F. Deuses e Demónios da Medicina. Publicações Europa América, Lisboa, 1968.
Vários. Wikipedia, Internet.


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