Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 26 de março de 2015

HISTÓRIA DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
III
IBN AL-NAFIS, MÉDICO DE DAMASCO


O árabe Abu-Alhassan Alauldin Ali Bin Abi-Hazem Al-Quarashi, nascido em Damasco em 1210 e conhecido pelo nome de Ibn al-Nafis foi o primeiro médico do mundo a entender a pequena circulação sanguínea. Os seus escritos andaram perdidos durante muito tempo, até poderem contribuir para o progresso da Medicina moderna.
Ibn al-Nafis escreveu:
«O sangue da câmara direita do coração deve chegar à câmara esquerda, mas não existe uma via direta entre eles. O septo espesso do coração não é perfurado e não tem poros visíveis, como Galeno pensou. O sangue da câmara direita deve fluir através da artéria pulmonar para os pulmões, distribuído por meio das suas substâncias, ser ali misturado com o ar, passar através da veia pulmonar para alcançar a câmara esquerda do coração e lá formar o espírito vital…»  
Note-se que esta tradução não é feita à letra e que alguma terminologia foi modernizada.
Afigura-se inconcebível que algum médico se tenha atrevido a contrariar frontalmente as opiniões de Galeno sem uma experiência anatómica consistente. As dissecções animais não poderiam ser suficientes, dada a possibilidade de a analogia ser imperfeita. É, aliás, improvável que os muçulmanos aceitassem dissecar porcos, animais pelos quais sentiam repugnância. Al-Nafis dissecou seguramente cadáveres humanos.
O médico árabe descreveu também a anatomia dos pulmões:
«Os pulmões são compostos de partes, uma das quais são os brônquios, a segunda, os ramos da arteria venosa e a terceira, os ramos da arteriosa cava, todas elas ligadas por carne porosa solta».
Afirmou ainda que os nutrientes para o coração eram extraídos das artérias coronárias:
«A declaração de Avicena de que o sangue que está no lado direito é para nutrir o coração não é totalmente verdadeira, pois o alimento para o coração é obtido a partir do sangue que passa através dos vasos que permeiam o corpo do coração».
Ibn al-Nafis aprendeu Medicina com Aldakwar e estudou os trabalhos dos árabes Rhazes e Avicena e do judeu Maimónides. Foi médico pessoal do sultão e trabalhou no hospital Al-Mansouri, no Egipto. Faleceu no final de 1288, quando Mondino de Luzzi era adolescente.
As observações de al-Nafis foram registadas quase 400 anos antes dos trabalhos de William Harvey sobre a circulação sanguínea. Curiosamente, os clérigos interditaram as autópsias humanas na maior parte do mundo arábico-islâmico. O próprio al-Nafis, que além de médico era especialista em jurisprudência islâmica, condenou publicamente a prática de autópsias humanas por as considerar contrárias à sharia e à compaixão. Paradoxalmente, quase todos os estudiosos da sua obra sustentam que ele e os seus discípulos recorreram repetidamente a dissecções humanas. De outro modo, não teria sido possível compreender a anatomia nem esboçar o conhecimento da fisiologia da pequena circulação. Note-se que o trabalho de Ibn al-Nafis representou provavelmente a contribuição mais importante dos médicos medievais muçulmanos para o conhecimento da Medicina.
Lawrence Conrad (citado por Gutiérrez) afirmou em 1985 que, embora a experimentação com corpos humanos fosse muito mal vista pelos maometanos, essa prática, ao contrário da mutilação de cadáveres, nunca foi formalmente proibida. Acreditava-se que os mortos continuavam a sentir a dor e que, no Juízo Final, os seres humanos se apresentariam perante Alá em corpo e alma, devendo, nessa, altura estar completos. É interessante anotar que alguns estudiosos de História da Medicina, entre os quais se conta Fernando Namora, consideram que o árabe Ibn al-Nafis, inibido pelas suas convições religiosas, nunca praticou autópsias humanas. 

Fontes:
Barradas, Joaquim. A arte de Sangrar de cirurgiões e barbeiros. Livros Horizonte, Lisboa, 1999.
Bedrikow, R., Golin, V. Carta ao editor. A história da descoberta da circulação pulmonar. J. Pneumologia vol.21 nº1, São Paulo, jan/fev 2000.
Botelho, J.B.  Miguel Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes. Publicado na Internet, em História da Medicina, em 04/04/2012.
Gutiérrez, F. A dissecção no Islão e no ocidente cristão na Idade Média. 22/agosto/2010, Terceira cultura (Internet).
Namora, F. Deuses e Demónios da Medicina. Publicações Europa-América, Lisboa, 1968.


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