Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 25 de março de 2015

HISTÓRIA DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
II
MIGUEL SERVET

INOVADOR OU TRADUTOR?

        

Foi, durante séculos, atribuído a Miguel Servet o mérito de ter percebido, antes de todos, o mecanismo da pequena circulação. Leonardo da Vinci andou lá perto, ao entender os movimentos de abertura e fecho das válvulas cardíacas e André Vesálio, na segunda edição da Fabrica, negou a existência dos minúsculos orifícios que, no entender de Cláudio Galeno, asseguravam a comunicação interventricular.
Lembremos que as dificuldades sentidas na compreensão da circulação sanguínea assentavam nos dados obtidos pela dissecção de cadáveres humanos e animais na antiguidade: não se encontrava sangue nas artérias. Segundo Erasístrato de Alexandria(300-250 a.c.), as veias continham sangue e as artérias distribuíam ar pelo organismo. 


Erasístrato de Chio. Juntamente com Herófilo, fundou a Escola de Anatomia de Alexandria. 

Galeno (129-200 d.c.) supunha que o sangue era produzido no fígado e levado pelas veias até aos órgãos periféricos, não voltando ao coração. Transformava-se na matéria dos tecidos que alimentava. O fígado era obrigado à produção contínua de sangue, o qual seguia pela veia cava superior até à aurícula direita e ao ventrículo homolateral. Existiriam poros no septo interventricular, permitindo a passagem, para o lado esquerdo, de uma pequena quantidade de sangue que, sujeito à influência do calor inato do coração e do pneuma, existente no ar, se expandia e ficava imbuído do espírito vital que era levado pelas ramificações arteriais a todas as partes do corpo. Os pulmões serviam para arrefecer o sangue e o coração. Este modo de ver as coisas dominou a arte médica durante mais de um milénio.
A igreja católica queimou alegremente os exemplares do Christianismi Restitutio que consegui apanhar. A revolução fisiológica contida nessas páginas apenas foi divulgada anos após a publicação do livro L`Exercitatto anatomica de motus cordis et sanguinis circulatione (Exercício anatómico sobre o movimento do coração e do sangue dos animais), de William Harvey.
Miguel Servet não chegou a explicar as bases em que assentou a sua conceção revolucionária da pequena circulação sanguínea. Em 1924, o médico egípcio Muhyo Altawi descobriu em Berlim, na Biblioteca Estatal Prussiana, manuscritos perdidos do médico árabe Abu-Alhassan Alauldin Ali Bin Abi-Hazem Al-Quarashi, nascido em Damasco em 1210 e conhecido pelo nome de Ibn al-Nafis. 


Terá sido Ibn al-Nafis o primeiro médico do mundo a entender a pequena circulação sanguínea. Expôs as suas conceções no Comentário à Anatomia do Canon de Avicena, quatro séculos antes da publicação da obra decisiva de William Harvey.
Servet seria um conhecedor da literatura muçulmana e judaica e terá tido acesso aos escritos de Ibn al-Nafis, traduzidos para o latim em 1547 por Andrea Alpago di Belluno. Resta-lhe a glória de ter sido o primeiro a divulgar na Europa o mecanismo correto da pequena circulação sanguínea.


Fontes:
Barradas, Joaquim. A arte de Sangrar de cirurgiões e barbeiros. Livros Horizonte, Lisboa, 1999.
Bedrikow, R., Golin, V. Carta ao editor. A história da descoberta da circulação pulmonar. J. Pneumologia vol.21 nº1, São Paulo, jan/fev 2000.
Botelho, J.B.  Miguel Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes. Publicado na Internet, em História da Medicina, em 04/04/2012.
Gutiérrez, F. A dissecção no Islão e no ocidente cristão na Idade Média. 22/agosto/2010, Terceira cultura (Internet).


Sem comentários:

Enviar um comentário