Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015


    DE HUMANIS CORPORI FABRICA


           UMA INTRODUÇÃO À OBRA DE VESÁLIO


                                                                                               II


A Fabrica foi publicada num único volume e consta de sete «livros» ou capítulos que ilustram os diversos aspectos da anatomia humana. É escrita em latim e profusamente ilustrada com magníficas xilogravuras. São apresentadas 22 ilustrações grandes e 187 pequenas.
Vamos passar os «livros» em revista, de forma sintética.


O primeiro capítulo trata da descrição dos ossos, enquanto o segundo ilustra os ligamentos e os músculos que asseguram os movimentos voluntários. O autor descreve ainda os processos de disseção a que recorreu.




Estes dois «livros» apontam para vários erros de Galeno e constituem o que de melhor Vesálio conseguiu em matéria de exactidão. As gravuras são duma beleza diícil de ultrapassar. Serão também as ilustrações anatómicas mais famosas de todos os tempos.









O terceiro «livro» trata do sistema circulatório. Nesta matéria, Vesálio não foi capaz de se libertar da influência de Galeno. A sua descrição dos ramos do arco aórtico parece inspirada na anatomia dos macacos.



No entanto, há aqui avanços científicos: André Vesálio descreveu a veia mesentérica inferior e as veias hemorroidárias.


O «livro» IV trata do sistema nervoso. Vesálio clarificou o significado da palavra «nervo» como estrutura capaz de conduzir sensações e movimentos, diferenciando-o de ligamento e de tendão. Aceitou, ainda assim, que a acção dos nervos residia na distribuição do «espírito animal» a partir do cérebro, como sugeria Galeno. 


As noções transmitidas pelo sábio greco-romano, que dividia os nervos cranianos em sete pares, estavam presentes no pensamento de todos os médicos da época e Vesálio não refutou este conceito, apesar de ter descrito parte do nervo troclear. Pôde, entretanto, constatar que o nerco óptico não era oco, como se supunha. Sem atingir o brilhantismo que demonstrou noutros capítulos, fez algum avanço na descrição dos nervos espinhais.
No «livro» V, André Vesálio descreve as vísceras abdominais, aproximando os órgãos da nutrição dos reprodutores. Aceitou a ideia de Galeno, segundo a qual o sangue era produzido no fígado, mas rejeitou a noção de que esta víscera era composta de sangue solidificado.

Gravura renascentista anterior a Vesalio


Negou também que a veia cava se originasse no fígado e que este órgão se dividisse em múltiplos lobos, como afirmara Galeno, assentando em observações de animais. Rejeitou ainda a existência duma abertura directa das vias biliares para o estômago.
No que respeita ao aparelho urinário, sugeriu que o «sangue seroso» atravessava a substância membranosa dos rins onde se libertava do seu «humor seroso» que seria então conduzido à bexiga através dos ureteres.


Ao tratar dos órgãos da reprodução, André Vesálio refutou a ideia antiga do útero segmentado, proveniente de dissseções em animais. Curiosamente, a sua representação da vagina humana assemelha-se antes a um pénis.


Estariam em causa ideias correntes sobre a suposta simetria dos géneros. Vesálio considerava que o útero e a vagina eram um só órgão e apelidou a vagina de «colo». Os ovários eram também chamados «testículos da mulher».
O «livro» VI trata dos órgãos torácicos. Vesálio achou a substância do coração parecida com a dos músculos, sem lhe atribuir essa qualidade, por não dispor de movimentos voluntários. Considerou-o formado por duas câmaras ou ventrículos. A aurícula direita seria uma continuação das veias cavas e a esquerda faria parte da veia pulmonar.

Vesálio não poderia encontrar no septo interventricular os inexistentes pequenos orifícios através dos quais, de acordo com Galeno, o sangue passaria do ventrículo direito para o esquerdo, mas não descortinou explicação melhor para a circulação sanguínea.
O coração era geralmente considerado o local onde se situava a alma. Não a achando, o anatomista adoptou uma atitude prudente e ambígua que lhe permitiu evitar a hostilidade do clero.


O sétimo e último «livro» trata da anatomia do cérebro e expõe as fases da sua disseção. Aborda ainda os órgãos dos sentidos.


O contributo de Vesálio para a compreensão dos mecanismos do pensamento foi revolucionário. Até então, aceitava-se que as actividades intelectuais residiam nos ventrículos cerebrais, localizando-se a percepção nos ventrículos anteriores, o julgamento no médio e a memória no posterior. A sensação e o movimento resultariam da ação do «espírito animal» segregado na retemirabili, uma fina teia de artérias existentes na base do crânio. Ora, já Berengario de Carpi questionara a existência da retemirabile. As suas dúvidas foram confirmadas por Vesálio que demostrou que a tal rede de pequenas artérias existia apenas em alguns animais, como os ungulados.
André Vesálio negou aos ventrículos cerebrais outra função que não fosse a drenagem de líquido. Recusou também a ideia de que a mente, ou espírito, pudesse ser dividida em faculdades separadas.
Rematou o seu trabalho sobre o cérebro aconselhando os métodos a utilizar na sua disseção.
A Fabrica termina com um subcapítulo sobre a vivisseção.
Nenhuma obra anatómica voltaria a obter tamanho sucesso, nem modificaria tão profundamente os conceitos anatómicos anteriores.
                                                            (continua)



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