Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

                             
            ANDRÉ VESÁLIO


Hoje completam-se quinhentos anos passados sobre o nascimento de André Vesálio, o fundador da Anatomia moderna.
Vesálio é o nome aportuguesado de Andries van Wesel, mais conhecido no mundo científico como Andreas Vesalius. Nasceu em Bruxelas a 31 de dezembro de 1514 e morreu na ilha de Zakinthos, na Grécia, a 15 de outubro de 1564, quando regressava duma viagem à Terra Santa.
O seu pai, André também, era boticário do imperador Carlos V.


Vesálio foi um homem do Renascimento. Fez os primeiros estudos em Bruxelas. Em 1530 matriculou-se na Universidade de Lovaina (Leuven, na Bélgica) e em 1533 mudou-se para a Universidade de Paris, onde estudou com Jacobus Sylvius, um fiel de Galeno que mais tarde se iria incompatibilizar com o mais brilhante dos seus alunos.
A guerra entre a França e o Sacro Império Romano obrigou Vesálio a regressar a Lovaina, onde, em 1537, aos 23 anos, recebeu o grau de bacharel em Medicina. No mesmo ano, viajou para Pádua, um dos centros universitários mais conhecidos da Europa. Parecia que o esperavam. Após um exame de dois dias, foi-lhe atribuído o grau de Doutor em Medicina. No dia seguinte, foi nomeado professor de Cirurgia e Anatomia.
Revelou-se então como anatomista. Ao contrário do que era habitual, Vesálio executava ele próprio as dissecações. Fez também as primeiras ilustrações, destinadas a facilitar o estudo aos seus alunos.
O anatomista desenhava mal e dava conta da importância que as imagens tinham para a compreensão dos textos. Procurou e obteve a colaboração de artistas de qualidade. Terá ido buscá-los à oficina de Ticiano, em Veneza. As ilustrações não foram assinadas.


 Diz-se que Jan Stephen van Calcar teve uma importância crucial na composição das suas gravuras anatómicas.



O número de cadáveres disponíveis para dissecção era limitado. O prestígio do jovem professor universitário levou Marcantonio Contarini, juiz do tribunal de Pádua, a reservar-lhe os corpos dos criminosos condenados à pena capital, chegando a atrasar as execuções em benefício do anatomista. Não conheço outro contributo de um juiz para o progresso da Medicina.


Podendo recorrer a mais material de estudo, Vesálio constatou cedo que Galeno descrevera a anatomia de porcos e macacos e que os seus ensinamentos contradiziam com frequência o que era possível observar no corpo humano.


Durante mais de mil anos, contestar Galeno constituíra um sacrilégio para os médicos. Vesálio fê-lo bem alto, primeiro em Pádua e depois em Bolonha.
Por volta de 1538, de novo em Pádua, Vesálio deu início à elaboração da obra mais importante da sua vida: De humani corporis fabrica. O título pode ser traduzido, de forma aproximada como «A estrutura do corpo humano». 


O livro foi impresso em Basileia, na tipografia de Joannes Oporinus, em 1543. Esta publicação marca, no dizer de Aguirre, o início da medicina moderna. Irei referi-lo com algum detalhe dentro de dias.
O sucesso extraordinário da sua obra teve uma consequência nefasta: André Vesálio, tornado famoso, foi contratado como médico do Imperador Carlos V e da sua família e abandonou os estudos anatómicos. Tinha 32 anos.
Foi cirurgião militar, nas guerras do imperador. Trabalhou como médico durante a batalha naval de Lepanto e tratou Miguel Cervantes, ferido no combate contra os turcos.

O seu treino de minúcia nos trabalhos anatómicos adaptava-se mal à necessidade de rapidez das intervenções executadas antes da descoberta da anestesia. Ainda assim, Vesálio introduziu na literatura médica a drenagem cirúrgica dos empiemas ganhando fama também como cirurgião.
O maior contributo de André Vesálio para o desenvolvimento da Medicina reside certamente no reconhecimento de que os cirurgiões devem ter um conhecimento aprofundado da anatomia humana, o que só poderia ser conseguido se praticarem dissecções em cadáveres.
Quando o rei Henrique II de França foi gravemente ferido na cabeça durante um torneio, Ambroise Paré foi chamado para o tratar. Como o rei não melhorou, a corte requereu os serviços de André Vesálio.  




O doente não resistiu aos ferimentos e Paré não perdoou ter sido subalternizado. Em 1562, acusou André Vesálio de ter realizado uma vivissecção numa mulher em letargia histérica.
Morto Carlos V, Vesálio foi, de certo modo despromovido por seu filho e sucessor, Filipe II de Espanha (e primeiro de Portugal). Foi encarregado de tratar os holandeses da corte.



Não se sabe muito sobre este período de vida André Vesálio nem sobre as circunstâncias que precederam a sua viagem de à Terra Santa. Na falta de informações, sobram as conjeturas. Poderá ter sido acusado de heresia pela Inquisição espanhola, ao tempo muito ativa. Há quem diga que praticou (inadvertidamente ou não) uma vivissecção num humano (já tinha sido acusado anteriormente de crime semelhante, como vimos atrás). Outros sugerem que a peregrinação a Jerusalém constituiu uma maneira diplomática de sair da corte espanhola.
 Tão pouco sabermos se pretendia regressar. Certo é que partiu em 1564. Passou por Itália, onde terá sido convidado para regressar ao ensino na Universidade de Pádua. Embarcou em março desse ano para a Palestina, com escala em Chipre. Em data imprecisa, empreendeu a viagem de regresso. O navio em que seguia enfrentou uma tempestade violenta. Vesálio chegou em outubro, doente e debilitado, à ilha de Zakinthos, onde acabaria por morrer. 

Não é conhecido o local onde foi enterrado. André Vesálio tinha 50 anos.
 O grande mérito de Vesálio foi ter libertado o ensino e a pesquisa da anatomia dos escritos de Galeno que haviam pontificado durante 14 séculos.
O seu trabalho verdadeiramente científico interrompera-se 18 anos mais cedo. Em Pádua, Vesálio teve seguidores de mérito: Realdo Colombo (com quem Miguel Ângelo projectou fazer um atlas de anatomia), Gabriel Fallopio, Jacobus Fabrizzi (mestre de William Harvey) e Julius Casserius.


                                                  (Continua)

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