Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 8 de abril de 2014

              A MINHA EXPERIÊNCIA COMO MÉDICO DO

    NAVIO HOSPITAL GIL EANNES



                                          
                       IV
        A PESCA DO BACALHAU

Julgo que nunca existiu um período de defeso anual para a pesca do bacalhau. As campanhas eram determinadas pelas condições do mar e pelas capacidades dos navios para as enfrentarem. A meteorologia é mais favorável de abril a julho, enquanto a qualidade do peixe é alegadamente melhor em outubro. Os lugres costumavam partir na primeira ou na segunda semana de abril, para uma viagem que rondava os seis meses de duração. Os arrastões, maiores, mais rápidos e melhor adaptados ao mar, saíam em fevereiro ou no começo de março, para regressarem em junho. Descarregavam o peixe, antes de partirem para uma segunda viagem que durava, em regra, até ao começo de dezembro. Todos evitavam o inverno tempestuoso dos Bancos da Terra Nova.



Em abril de 1970, embarquei no Gil Eannes. Ia cumprir o serviço militar obrigatório. A frota ia sendo reconvertida e os navios novos eram todos arrastões. Os barcos de arrasto lateral estavam a ser substituídos pelos de arrasto pela popa. A dada altura, o peixe passou a ser congelado, em vez de salgado.
No total, empregavam-se na pesca do bacalhau entre cinco e seis mil homens. Entre eles, havia três militares.



Estamos aqui: eu, o comandante Gaspar, Capitão de Porto nos mares da Terra Nova e da Gronelândia e o meu colega Barros Pereira.
Calhou-me acompanhar os últimos anos da pesca à linha. Em 1970, fizeram-se ao mar 31 navios de dóris. No ano seguinte eram 16. Depois, foram acabando. O último navio de linha regressou em 1974. Em França, esse tipo de pesca terminara em 1950.
Deixámos Lisboa na primavera. É assim a entrada do porto de St. John`s, em dia de sol.



São João da Terra Nova contava, na altura, cerca de 100.000 habitantes e não era uma cidade bonita, mas era o nosso porto e os marinheiros aprendem depressa a apreciar o calor dum porto. Digam os poetas o que disserem, o mar é um deserto e só sabe bem perto de terra.
Eu não estive apenas no Gil Eannes. Passei um mês no Vimieiro, na primeira viagem e dois no Neptuno, na segunda, sempre na costa da Gronelândia.

VIMIEIRO AO LARGO DA GRONELÂNDIA

Cada navio de linha transportava entre 80 e 100 dóris. Os dóris eram botes de fundo chato com cerca de quatro metros de comprimento.



A alimentação no Gil Eannes era boa e nos navios de pesca ainda era melhor, pois comiam o peixe do dia. 


O cozinheiro, para o mal e para o bem, era um dos elementos mais importantes da tripulação.

O NEPTUNO FRENTE AO TERREIRO DO PAÇO

Quando o tempo estava claro, à noite, a aglomeração de navios em redor do Manolejo, em Virgin Rocks, nos Bancos da Terra Nova, fazia lembrar as luzes de uma aldeia grande. Manolejo é o aportuguesamento de Main Ledge, um rochedo em que se vê a rebentação. Ficaram sepultados naquelas águas dezenas de navios portugueses e muitos de outras nações.
Os pescadores eram acordados de madrugada, ao som dos “louvados”. O vigia cantava:

       «Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo»


E os pescadores, ensonados, respondiam:


               «E sua mãe Maria santíssima».

Tomavam uma pequena refeição e arriavam os dóris. (Arriar é fazer descer).



Eram movidos a remos, com uma pequena vela e, em tempos recentes, com um motor auxiliar. Os pescadores manobravam-nos com apreciável mestria.
Afastavam-se do navio-mãe até três milhas de distância e desenrolavam o trol, uma linha com perto de 200 metros de comprimento, guarnecida de centenas de anzóis que tinham preparado e iscado na véspera, à noite. Deixavam-na estar algumas horas no fundo do mar e depois recolhiam o peixe.

          GRONELÂNDIA, PERTO DE GODTHÀB (NUUK)

Se a pesca falhava nos Rocks, os capitães conduziam os navios para a costa da Gronelândia.


Havia embarcações muito belas. Penso que reconhecem o Creoula.
Tem um irmão gémeo, o Santa Maria Manuela.


Um navio menos elegante...



Este é outro barco de pesca à linha, num dia de nevoeiro, como havia muitos. Será fácil compará-lo a uma galinha com muitos pintos.



                                      
DÓRIS AO LONGE


UM MAIS PERTO

ALAR O TROL

Os icebergs eram comuns, no mar da Gronelândia.


Os bancos de gelo nem tanto, mas dificultavam a passagem dos navios.


Os pequenos blocos de gelo (grollers) eram às vezes mais perigosos, por se distinguirem mal no radar quando havia ondulação forte.



Às vezes, a pesca era boa. Eis um dóri bem carregado. 



Havia prémios de produtividade. Os melhores pescadores, quase todos oriundos de povoações costeiras, chegavam a auferir uma paga razoável.
Depois de alar o aparelho, era preciso encontrar o navio. A navegação fazia-se com a ajuda duma pequena bússola.


Na primavera, nos bancos da Terra Nova (bancos são zonas marítimas de águas pouco profundas), o nevoeiro era habitual e a visibilidade limitada. O capitão mandava recolher o ferro e navegava para sotavento, tendo em atenção a corrente, se a havia. Procurava os dóris na zona para onda a maioria tinha sido arrastada.
O peixe era recolhido.



Seguiam-se a escala e a salga.


Quando havia muito peixe, os pescadores chegavam a trabalhar vinte horas seguidas e a dormir três ou quatro horas por noite. Quanto mais se pescava, mais demoravam a escala e a salga do peixe. Os dias de temporal eram de descanso.
Para os pescadores, a pesca à linha era uma atividade extraordinariamente dura. Quando o bacalhau começou a escassear, manteve-se rentável graças aos baixos salários praticados.
Dantes, os pescadores vinham, sobretudo, das Caxinas (Póvoa do Varzim) ou da Nazaré. Uns tantos eram açorianos. Chamavam «verdes» aos caloiros e «maduros» aos pescadores experientes.
Para escaparem à guerra das colónias, passaram a vir de todo o País. Serviam cinco anos seguidos ou seis intercalados. Era quase escravatura.
Alguns, antes de chegarem aos portos de embarque, nunca tinham avistado o mar.

Fotografias: Minhas, exceto a escala (retirada da revista Oceanos) e a do navio Neptuno (retirada da Internet).

Também publicado no blogue decaedela.

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