Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 29 de março de 2014

                          

         UM ASSASSINO



─ Doutor, eu também tenho o seu dom…
Devo tê-lo olhado com ar interrogativo.
O Manuel (não era o seu nome verdadeiro) continuou:
─ O dom de tranquilizar as pessoas… De curar…
Fez uma pequena pausa e continuou.
─ Às vezes, quando vejo uma criança a chorar, coloco-lhe as mãos na cabeça. Sossega logo.
O Manuel era um tipo estranho, de sorriso fácil, que por vezes parecia alheado, como se tivesse deixado parte de si noutro lugar e não estivesse completo à minha frente.
Tinha uma boa empatia comigo e fazia-me confidências.
─ Gosto de subir sozinho às montanhas. Fico leve e sinto-me bem. Parece-me que estou perto de Deus.
O meu feitio desconfiado obrigou-me a enviá-lo a uma consulta de Psiquiatria. Nunca cheguei a saber se tinha alucinações.
Eu operara-o a um adenoma não funcionante da hipófise anos atrás. Era seguido por mim e pela Endocrinologia. O Manuel era atrevidote e tentou namorar a colega que colaborava no seu tratamento. Não esmoreceu por ter sido repudiado. Estaria habituado a ganhar e a perder.
Um dia, soube que o Manuel estava preso. Tinha abatido a tiro a mulher com quem vivia e fora condenado a uma mão cheia de anos de cadeia. Não sei se a sua história psiquiátrica chegou a ser tomada em conta pelo tribunal.
Regressou à minha consulta, acompanhado por dois guardas prisionais. Explicou:
─ Aquilo foi um azar… Estava a apontar para outro lado e a bala fez ricochete. Não sei porque é que o juiz não acreditou em mim…
Ia aparecendo de tempos a tempos, para controlo clínico, imagiológico e laboratorial. As consultas representavam para ele uma quebra na rotina e faziam-se desejar.
Reformei-me e não o vejo há anos. Julgo que, por esta data, já cumpriu boa parte da pena. Trata-se dum homem geralmente bem comportado e é natural que tenha saído em liberdade condicional.
O destino vai tecendo as suas teias. O Manuel conheceu a mulher a quem se juntou e que acabaria por matar nos corredores da Consulta Externa do Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa. Foi assim que um doente operado por mim assassinou uma doente operada pelo meu colega Maia Miguel. 

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