Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A  MEDICINA   EM MACAU

III

      ENFERMARIA (TERCENA) MILITAR



Os comerciantes de Macau opunham-se, de um modo geral, a todas as despesas improdutivas. Limitavam os subsídios destinados aos clérigos e reduziam ao mínimo possível os gastos com militares.
Durante vários anos, não se sentiu a necessidade da tropa. Em 1622, o governador holandês de Batávia, Jan Pieterrzoon enviou uma expedição a Macau. Os invasores foram derrotados. Pieterrzoon escreveu, no ano seguinte: «os portugueses derrotaram-nos em Macau com os seus escravos; não foi com soldados, pois não havia lá nenhum».



A ameaça holandesa fez tocar os sinos de rebate. As autoridades macaenses pediram ajuda a Manila e a Goa. Manila enviou prontamente «mais de cem soldados e mui boa artilharia a cargo do sargento-mor J. Fernando da Silva». O Vice-Rei da Índia enviou outros cem soldados e o primeiro capitão geral, D. Francisco Mascarenhas. Foram então ocupados os postos mais adequados à defesa da cidade: a Barra, o forte de S. Francisco, a Penha de França, o forte de S. Paulo e o de Nossa Senhora da Guia.



O capitão geral mandava apenas nos militares. Os chineses chamavam-lhe Peng-T´au (chefe da tropa). Quem dirigia toda a atividade de Macau, incluindo os serviços de ronda policial, eram os homens bons reunidos no Senado.



Macau passou a dispor duma guarnição mas, durante três séculos não existiu um hospital militar. Os soldados doentes eram tratados no único hospital existente: o da Misericórdia. A situação não agradava à Santa Casa. Os soldados ocupavam os lugares que deveriam ser para os pobres «que ficam mal acomodados e muitas vezes não têm lugar para serem recebidos». Além disso, os militares internados mostravam uma certa propensão para a desordem «pela introdução de bebidas e outras causas prejudiciais à saúde».


Fizeram-se alguns projetos para construir um pequeno hospital ou uma enfermaria destinada exclusivamente ao uso da tropa. Foram esbarrando nos custos. Eram precisos «cirurgião, botica, boticário, capelão, administrador, enfermeiro e serventes». Em 1785, o orçamento para a enfermaria, estimado em 6.000 taéis, foi considerado exagerado pelo Governador da Índia. A Tercena militar seria construída apenas em 1798. O seu primeiro médico foi Manuel Gonçalves. O primeiro sangrador da tropa foi João Alexandre de Vasconcelos, «homem preto» que exercia as mesmas funções no Hospital da Misericórdia. A Tercena tinha quartos particulares para oficiais.



Em 1822, o Dr. Domingos José Gomes deixou-nos o relato das doenças que tratou durante os seus 12 anos de cirurgião-mor em Macau: «tabes ou convulsões dorsais, obstruções e cirroses, tanto do fígado como do mesentério, vício sifilítico ou gálico, hidropisias, ascites, algumas disenterias e finalmente febres que, relativamente às moléstias acima ditas, são poucas».
Domingos Gomes atribuía esta patologia ao «continuado alimento de peixe, ora salgado, ora fresco, mariscos, continuamente adubados de grande quantidade de açafrão, pimentos e muitas espécies aromáticas e calefacientes, que só por si depravam as túnicas do estômago e, conseguintemente, alteram mos sucos digestivos tão essenciais à digestão… O excessivo uso de um vinho que os chinas extraem do arroz e que o vulgo, em razão dos seus estragos, chama “fogo”, tão acre e tão corrosivo que arruína e dá cabo em poucos meses do indivíduo mais valente que a ele se aplique…



A incontinência, que se pode considerar como um efeito ou corolário das premissas acima declaradas, é, também, outra não menos fatal à tropa, pelo continuado estímulo da comida tão condimentada e da bebida excitante, impelindo à satisfação das suas paixões carnais, contrai com maior facilidade o vício gálico e às vezes duma natureza tal que, resistindo ao mais bem ideado tratamento, conduz muitos dos doentes à sepultura…»

Imagens: arquivo pessoal, Internet.

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