Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 28 de agosto de 2011

OBSTINAÇÃO TERAPÊUTICA




A medicina antiga visava a cura, quando ela era possível e o alívio do sofrimento, quando a morte era inevitável.  Procurar manter viva uma pessoa em sofrimento, depois de perdida qualquer esperança de recuperação, não era considerada boa prática clínica. 
A ideia de prolongar a vida humana a todo o custo é relativamente recente, numa perspectiva histórica. Desenvolveu-se sobretudo a partir da segunda metade do século XX e foi possibilitada pela evolução tecnológica. O progresso da ciência médica permitiu curar muitas doenças e tornou crónicas afecções que anteriormente eram rapidamente mortais. A esperança de vida aumentou e trouxe com ela o envelhecimento da população. Ora, a velhice não se cura e os idosos são caros. Ocorreram também mudanças na apreciação que as pessoas faziam dos factos. Morrer deixou de ser o corolário natural da vida para se tornar um sintoma de fracasso. 
Os avanços tecnológicos tornaram possível manter vivas pessoas sem perspectivas de melhoria e com uma existência miserável. Obrigaram médicos e legisladores a repensarem as suas normas, de forma a poderem enfrentar os desafios modernos. A tecnologia é dispendiosa e pouco útil em doentes quase terminais. Ganha-se algum tempo de vida à custa de sofrimento, de despesa e, tantas vezes, de solidão. Aflige-me pensar numa pessoa lúcida e sem esperança sujeita a ventilação assistida durante um período de tempo prolongado.
Encontram-se nos dicionários de língua portuguesa duas palavras comuns que exprimem conceitos que, de algum modo, balizam os nossos procedimentos: perseverança e obstinação. No intervalo variável entre eles hão-de situar-se a arte, a ciência e a ética médicas. Se é erro submeter alguns doentes a medicina a mais, constituirá, noutros casos, um mal maior desistir antes do tempo. 
Muitas vezes, é fácil ver claro e tomar decisões adequadas. A experiência ajuda. Existem, em diversas áreas terapêuticas, directrizes mais ou menos consensuais. No entanto, nas franjas da estatística, o conhecimento de excepções às regras continua a ser fonte de angústia para quem tem a responsabilidade de decidir. 
Quando é que um médico se deve continuar a esforçar por manter vivo o seu doente e quando é que tem a obrigação de desistir de uma terapêutica inútil e agressiva, susceptível de produzir mais sofrimento do que benefício? A decisão não é simples em todos os casos. Lembremos um aforismo de Hipócrates: a vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o juízo difícil. Na dúvida, o médico prefere geralmente pecar por teimosia. No entanto, a futilidade terapêutica tem um preço elevado e todos os profissionais de saúde se devem habituar a fazer contas, sem deixar de resistir à pressão para avaliar os resultados sobretudo em função dos custos. 
Ainda que a questão da obstinação terapêutica se coloque em áreas muito diversas da medicina, como a hemodiálise e a quimioterapia da doença oncológica, deu-se por ela mais cedo no campo da medicina intensiva. Será ainda neste capítulo que a necessidade de tomar decisões importantes é mais frequente. A manutenção da ventilação mecânica em doentes terminais constitui um dos exemplos mais conhecidos. 
Nem tudo o que é novo é bom e a muitos doentes foi negado o direito a morrerem em paz. A morte, ao contrário do que parece poder inferir-se de alguns telejornais, não resulta obrigatoriamente de erro médico. Somos vulneráveis. A juventude, a beleza, a força de a saúde não duram sempre. Quantas vezes a morte é misericordiosa...



Temos de reaprender os ensinamentos antigos: em dadas circunstâncias, o melhor que se pode fazer por um doente deixa de ser procurar mantê-lo vivo.
Morrer bem é uma aspiração antiga dos humanos. Em Setúbal, existem capelas dedicadas à Senhora da Boa Morte e ao Senhor do Bonfim que, aliás, exportámos para o Brasil. E, se calhar, nem sempre se morre melhor com um médico ao lado.


Imagens:
1- Internet
2- Colecção pessoal.

4 comentários:

  1. Palavras sábias de experiência feitas e escritas.Difícil é sempre para quem tem de decidir.

    ResponderEliminar
  2. Não sou médica, não tenho de tomar decisões que se prendem com a vida de outros, mas interessa-me muito este assunto. Li com emoção as palavras de António Trabulo, soam à verdade radicada na realidade da sua experiência como médico. Estando eu num situação de internamento (tenho 47 anos, tive um pneumotórax, tive de ser operada porque os drenos não resolviam...)tive a experiência triste de ver ao meu lado uma idosa a quem não deixavam morrer em paz. Médicos não passavam muito,mas enfermeiras sim, e com tão pouca sensibilidade para a senhora e para a situação... E a família? Quantas vezes não pensei em dizer ao filho "Leve a sua mãe consigo, dê-lhe carícias e beijinhos, como ela faria consigo em pequeno quando lhe doía algo. Acompanhe-a, ajude-a a morrer acompanhada, aqui ela está só, invadida pelas sondas, pelo profissionalismo das enfermeiras, e só de carinho". Concordo absolutamente consigo quando diz que não se deve negar o direito de morrer em paz. Com o avanço da ciência médica, a ilusão da eternidade aumentada pela crescente esperança de vida e pela respostas cada vez mais eficazes da medicina, levam a pensar que em toda e qualquer situação temos de preservar a vida a todo o custo. Não me parece que assim seja. Obrigada pelas suas palavras. Inspiram-me.

    ResponderEliminar
  3. Há comentários que merecem ser comentados. O seu é um deles. O Histórias da Medicina não se dedica exclusivamente a médicos. Assim como não é preciso ser professor para se falar de Educação, ou ser militar para debater a Defesa Nacional, também não é necessário trabalhar num hospital para discutir Saúde. São direitos e deveres que fazem parte do exercício da cidadania. Obrigado pelo seu contributo.

    ResponderEliminar
  4. Entendo muito bem tudo isso, tenho uma avó com 83 anos com Alzeimer e que há 02 anos vive em estado vegetativo, sinto muita pena e penso até que ponto vale a pena manter um ser em sofrimento, na realidade todos sofrem, embora ela não esteja mentalmente conosco, ainda existem reflexos, outro dia, estava cortando suas unhas do pé e percebi que ainda sente dor, ao toque da tesoura, repuxou a perna em demonstração de incomodo.
    Meu avô, aos 85 anos não se conforma em ver a esposa dessa forma, agora a pouco tempo descobriu estar com câncer no fígado, e somente agora começa a apresentar sinais de doenças senis, apresentando delírio e confusão mental.
    É tudo muito triste, no caso da minha avó, sei que Alzheimer não leva a sepultura e devido aos muito bons tratos que recebe, tanto da minha mãe, como dos cuidadores e mesmo que senil do meu avô, sua vida será prolongada, mas para que? pergunto, se não compartilha de mais nada, se não anda, não fala, não sai da cama, não come, não responde a nenhum estimulo, a não ser o de dor.
    Deus sabe de todas as coisas e acredito que exista uma razão, fora da própria razão.
    Abraços

    ResponderEliminar